quinta-feira, 5 de junho de 2008

Manifesto da Ecceidade / Manifeste de l'Eccéité

Não há haecceitas enquanto ultima actualitas forma ou sequer individuae. É, em acto, singularização neutralizante mas não esvaziante: criação de CsO. É relacional sem relata. Temporal mas só no espaço, espacial mas só no tempo: movimento puro sem sair do lugar (qual nómada sentado na areia do deserto). Acontecimento.
O recurso de Deleuze e Guattari a Duns Escoto para usarem e expandirem a ecceidade é mais que claro quando se não quer diminuir a importância de pensar a identidade do anonimato, a singularização do neutro. Mas a própria mecânica quântica cai no patético da contraditória afirmação de uma Existência: “com maiúscula”, sublinha Ulrich Morhro, enquanto argumenta a falência da ecceidade pela impossibilidade de re-identificação de uma partícula elementar antes e depois de ter sido submetida à acção de disseminação num laboratório de aceleração de partículas. “É a mesma ou outra qualquer idêntica”, diz. É o limite do argumento que podemos conhecer aqui. Contraditoriamente, afirma que, não se partindo do ponto de vista de um framework laboratorial mas sim de uma posição relativa e mais ou menos difusa entre idênticos, então que sim … que há efectivamente identidade, diferença, na repetição. Há diferença na repetição se a considerarmos em si. Só faltava dizer, “na sua ecceidade”.
A ecceidade (inaugurada por João Duns Escoto, revisitada por Martin Heidegger e reciclada por Gilles Deleuze) é aqui utilizada como noção abstracta, servindo de leitmotiv ao texto-processo; quanto ao hiper, que lhe pertence, é o móbil dos agenciamentos textuais rumo a um aumento e a uma dissipação de pluralidades singulares. É este hiper da ecceidade que significa a comunicação aparelhada pelas novas tecnologias – como os e-mails e os chats, centros de produção de comunicados que exigem a criação de máscaras individuais plurais por parte dos utilizadores (já não sujeitos mas ainda privados) digitais que já apenas têm identidades construídas sobre camadas, e se resumem a uma sublimação de ecceidades, como os anjos ou os monstros.
A Webness, e de uma forma alargada, toda a comunicação estética intrínseca aos media contemporâneos, é plano de imanência, e puro Aïon, por onde as individuações tensivas se autonomizam, temporariamente, em zonas não cartografáveis, em zonas essenciais e t(r)opológicas. As ecceidades hipertrofiadas e mediadas pela técnica constituem assim a narração aqui expressa.
Toma-se o termo ecceidade num movimento enviesado, como individuações-movimento, como fluxos imagéticos, como coordenadas instáveis, como configurações temporárias; e toma-se o conceito hiper-ecceidade como quem toma um comprimido estranho e sintético e ao mesmo tempo protoplásmico, como uma absorção de pixéis-ritmo, uma afectação de correntes-frame, uma impregnação em edit-loop, como um retomar de nada, um clipboard-amnésia que é já pós-momento.
A lógica dicotómica do in e out, do on e off, do incluído e excluído, é antevista aqui ainda numa visão binária mas já não exclusiva, antes inclusiva e extensiva, de modo que o digital é caminho para a passagem entre - será o in between, será o in the mean –, será, enfim, a passagem o essencial deste escrito. Ora as passagens, como os túneis, as travessas, as esquinas, os elevadores ou, num plano mais acelerado e amplificado pelas máquinas-motores, as autoestradas e os aeroportos, são Zonas Temporariamente Autónomas (ZTA), como uma conexão que se faz e desfaz constantemente na Web ou em qualquer outra rede de comunicação (um grupo de trabalho por exemplo). Estas passagens-conexões/ desconexões, estes nódulos, têm como pano de fundo a essência que os estrutura-desestrutura, um plano de consistência. São assim alguns dos planos (bolbos/ palcos diriam Deleuze e Guattari, volúpias encenadas diria Pierre Klossowski) dobrados e desdobrados, feitos de próteses e extensões irruputivas, que se pretende aqui activar, de maneira a que possa haver tacto, contacto, impacto, choque… de modo a que possa, pelo menos, haver afectação-presença na eminência constante da desligação-ausência.
O ordenador, termo francês para designar o computador, é bem ilustrativo da nova ordem que é a não ordem – ordem própria do caos que deixa em aberto o lugar da ordem num ordenamento evolutivo-caótico ordenado à sua própria imagem em turbilhão vertiginoso e re-flexivo. Os limites deste caos são, no entanto, os limites de sempre: os da sua contemporaneidade civilizacional, filosófica e metafísica, em suma, os da sua cultura – no caso a pós-moderna.

Dados perceptivos enquanto singularidades estéticas… indicialidades puras, noções de valor afectivo com gradientes valorativas – percepção de individuações: acontecimentos. A ecceidade é encenação, cénica natural, é uma estética individual e contextual ao mesmo tempo que é sincrética. Centrífuga e centrípeta, a ecceidade é paisagem conceptual digna de uma indicialidade cultural contemporânea, na medida em que os seus agenciamentos são solicitações plurais e co-presentes, movendo-se numa pluralidade que apenas a estética (não estática mas estésica) torna acontecimento. Esta estética é percepção distraída, memória involuntária, afectada e infectada pelas ecceidades – uma Intifada em que as ecceidades são pedras.

Sincretismos. É tempo de fruição, de excesso, de simulação de desejo e de prazeres individuais, é tempo de ligações e de contactos pontuais; são máximas do presente conceitos como hedonismo, individualismo, pós-modernidade, fragmentação, ruído, vazio, mutismo, saturação, revisitação, des-subjectivação, alterização, diferença, hiper-realidade, caos, virtual, informe, monstruoso, vertigem, aceleração e repetição, para apenas mencionar alguns dos termos mais em voga na contemporaneidade comunicacional ocidental. Trata-se, essencialmente, de um momento em que a velocidade sem tempo ou o tempo sem velocidade discursiva mas antes lateralizada, em paralelo, em padrão, se encontra inserida num espaço que por sua vez é neo-natural e balizado pelas máximas da representação naturalizante instituída pelas chaves da genética que em códigos naturalizam tudo. Ora, sendo tudo natural, nada o é, e é mais uma dicotomia que cai, tal como o dentro e o fora, o outro e o eu, o corpo e a alma, etc. Temos então a dissolução do natural e do ficcional / artificial / tecnológico / criativo-combinatório. Ou seja, a indistinção da diferença e da repetição, pois dir-se-á que ambos são conceitos de um só lugar-movimento: duas faces da mesma moeda.
Quando a dissolução é total vale a regra do jogo da emoção. Pois é o único leitmotiv possível e, quando assim é, a emoção torna-se moção sensível, e-moção, e o jogo instaura-se. O jogo novamente dos corpos mas de corpos quase etéreos, que é o mesmo que dizer corpos fantasmáticos ou simulados porque não formalmente constituídos, mas intuídos, adivinhados, pré-sentidos, pré-vistos. É essa não constituição formal dos corpos que faz da cénica contemporânea uma roda viva de conexões desejantes que se desregulam aleatoriamente num movimento de entropia e degeneração rumo à não-diferenciação. À diferença da diferença que é a repetição do mesmo em vertigem sem se constituir – em suspensão (suspensão imagética sentida pelo tacto e não recebida pelos olhos, é estesia). Mas desta simulação vertiginosa do mesmo, mîse-en-abyme, irrompe uma nova diferença gerada nas passagens, ecceidades.
Encontra-se, agora, esboçada uma certa cartografia mas falta ainda deambular pelas abrangências da corrente extra-grafada, extra-grafos. São os fluxos contextuais que multiplicam e alterizam os contextos em diversos planos, de modo a registarem-se paralelos comunicados em estesia. Comunicados sem si à imagem da acção de revelar um segredo que deixa, automaticamente, de o ser. São comunicados que apenas se verificam à medida que se atenta. São estes atentados que agenciam as coordenadas topográficas da carta estética da ecceidade. Aqui se ex-põe. Ser texto: devir-texto. Ser-texto em que os fluxos, as indicialidades, as individuações e as auto-referências lexicais, verbais-infinitivas, impessoais, gramaticais e semânticas se revestem da própria forma que, afinal, não é senão matéria.

1 comentário:

Luar na Relva disse...

Blog bacana, texto super útil, mas as cores do site me impediram de ler até o final. Letra branca num fundo preto é demais pra mim rsrs. Até logo